quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Agualusa

José Eduardo Agualusa



Barroco tropical

O amor é inútil: luz das estrelas
a ninguém aquece ou ilumina
e se nos chama, a chama delas
logo no céu lasso declina.

O amor é sem préstimo: clarão
na tempestade, depressa se apaga
e é maior depois a escuridão,
noite sem fim, vaga após vaga.

O amor a ninguém serve, e todavia
a ele regressamos, dia após dia
cegos por seu fulgor, tontos de sede
nos damos sem pudor em sua rede.

O amor é uma estação perigosa:
rosa ocultando o espinho,
espinho disfarçado de rosa,
a enganosa euforia do vinho.


José Eduardo Agualusa / Ricardo Cruz

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Gullar

Ferreira Gullar




Pergunta e resposta

Se é fato que
toda a massa do sistema
solar (somando a de Saturno e Marte
e Terra e Vênus e Urano e Mercúrio
e Plutão, mais
os satélites, mais
os asteróides, mais) equivale
apenas a 2% da massa
total do Sol e
que o Sol não é mais
que um mínimo ponto
de luz na estonteante tessitura de
gás e poeira da Via
Láctea e que a Via
Láctea é apenas uma
Entre bilhões de galáxias
que à velocidade de 300 mil km por segundo
voam e explodem
na noite

           
 então pergunto:
           
 o que faz aí
           
 meu poema com seu

           
 inaudível ruído?
             E respondo:
           
 Inaudível
           
 Para quem esteja
           
          Na galáxia NGC 5128
           
 Ou na constelação
           
 de Virgo ou mesmo
           
        em Ganimedes
           
 onde felizmente não estás,
           
         Cláudia Ahimsa,
             poeta e musa do planeta Terra.


Ferreira Gullar

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Cecília Meireles

Cecília Meireles



Naufrágio

Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
- depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar

Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre de meus dedos
colore as areias desertas.

O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio...

Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.

Depois, tudo estará perfeito;
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.


Cecília Meireles

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Valterlei Borges


Mãos dadas

Não quero ser o poeta
        que reclama dores de amor
Não quero ser o poeta
        que bebe por falta de paixões
Não quero ser o poeta
        que se vinga através dos versos
Não quero ser o poeta
        que se vangloria de poemas inúteis
Quero ser o poeta
        que nas ruas anda de mãos dadas


março de 2006, Valterlei Borges

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Ferreira Gullar

Estou lendo o último livro do Gullar, Em alguma parte alguma (2010), e estou maravilhado: não tem uma vírgula fora do lugar. Depois de 80 anos de poesia não poderia ser diferente...


Ferreira Gullar

Inseto

Um inseto é mais complexo que um poema
Não tem autor
Move-o uma obscura energia
Um inseto é mais complexo que uma hidrelétrica

Também mais complexo
                        que uma hidrelétrica
é um poema
(menos complexo que um inseto)

e pode às vezes
                       (o poema)
com sua energia
iluminar a avenida
             ou quem sabe
                                   uma vida.


Ferreira Gullar

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Poema só para Jayme Ovalle

Casamento de Jayme Ovalle: da esquerda para a direita, Murilo Mendes, Anibal Machado, Jayme Ovalle, Manuel Bandeira e Augusto Frederico Schmidt



Quando hoje acordei, ainda fazia escuro
(Embora a manhã já estivesse avançada).
Chovia.
Chovia uma triste chuva de resignação
Como contraste e consolo ao calor tempestuoso da noite.
Então me levantei,
Bebi o café que eu mesmo preparei,
Depois me deitei novamente, acendi um cigarro e fiquei pensando...
- Humildemente pensando na vida e nas mulheres que amei.

Manuel Bandeira

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

A ilusão da casa


 Vitor Ramil



As imagens descem como folhas
No chão da sala
Folhas que o luar acende
Folhas que o vento espalha

As imagens se acumulam
Rolam no pó da sala
São pequenas folhas secas
Folhas de pura prata
 
As imagens enchem tudo
Vivem do ar da sala
São montanhas secas
São montanhas enluaradas

Eu plantado no alto em mim
Contemplo a ilusão da casa
As imagens enchem tudo
Vivem enquanto falo

Eu sei
O tempo é o meu lugar
O tempo é minha casa
A casa é onde quero estar
Eu sei


Vitor Ramil

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Mario de Andrade

Mario de Andrade, por Tarsila do Amaral - pintura de 1922



O valioso tempo dos maduros

Contei meus anos e descobri que terei menos tempo para viver daqui para a frente do que já vivi até agora.

Tenho muito mais passado do que futuro.

Sinto-me como aquele menino que recebeu uma bacia de cerejas.

As primeiras, ele chupou displicente, mas percebendo que faltam poucas, rói o caroço.

Já não tenho tempo para lidar com mediocridades.

Não quero estar em reuniões onde desfilam egos inflamados.
Inquieto-me com invejosos tentando destruir quem eles admiram, cobiçando seus lugares, talentos e sorte.

Já não tenho tempo para conversas intermináveis, para discutir assuntos inúteis sobre vidas alheias que nem fazem parte da minha.

Já não tenho tempo para administrar melindres de pessoas, que apesar da idade cronológica, são imaturos.

Detesto fazer acareação de desafectos que brigaram pelo majestoso cargo de secretário-geral do coral.

'As pessoas não debatem conteúdos, apenas os rótulos'.
Meu tempo tornou-se escasso para debater rótulos, quero a essência, minha alma tem pressa...

Sem muitas cerejas na bacia, quero viver ao lado de gente humana, muito humana; que sabe rir de seus tropeços, não se encanta comtriunfos, não se considera eleita antes da hora, não foge de sua mortalidade,

Caminhar perto de coisas e pessoas de verdade,

O essencial faz a vida valer a pena.

E para mim, basta o essencial!


Mario de Andrade 


Agradecimento especial a Carol Guimarães por ter enviado o poema.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Indivisíveis

  Mario Quintana
 

O meu primeiro amor
e eu sentávamos numa pedra
que havia num terreno baldio entre as nossas casas.
Falávamos de coisas bobas, isto é,
que a gente grande achava bobas.
Como qualquer troca de confidências
entre crianças de cinco anos. Crianças...
Parecia que entre um e outro
nem havia ainda separação de sexos,
a não ser o azul imenso dos olhos dela,
olhos que eu não encontrava em ninguém mais,
nem no cachorro e no gato da casa,
que apenas tinham a mesma fidelidade sem compromisso
e a mesma animal - ou celestial - inocência.
Porque o azul dos olhos dela tornava mais azul o céu.
Não importava as coisas bobas que disséssemos.
Éramos um desejo de estar perto, tão perto,
que não havia ali apenas duas encantadoras criaturas,
mas um único amor sentado sobre uma tosca pedra,
enquanto a gente grande passava, caçoava, ria-se,
não sabia que eles levariam procurando
uma coisa assim por toda a sua vida...

Mario Quintana


Agradecimento especial a Lilian Alfaia pelo envio do poema.