domingo, 29 de janeiro de 2012

O amor bom é facinho

Recebi o link desse texto através do amigo e grande poeta paratiense Flávio de Araújo. Adorei o texto, de autoria de Ivan Martins, pois levanta algumas reflexões e questões pertinentes às relações contemporâneas. Por concordar com o autor, compartilho o texto aqui...




Ivan Martins


Há conversas que nunca terminam e dúvidas que jamais desaparecem. Sobre a melhor maneira de iniciar uma relação, por exemplo. Muita gente acredita que aquilo que se ganha com facilidade se perde do mesmo jeito. Acham que as relações que exigem esforço têm mais valor. Mulheres difíceis de conquistar, homens difíceis de manter, namoros que dão trabalho - esses tendem a ser mais importantes e duradouros. Mas será verdade?

Eu suspeito que não.

Acho que somos ensinados a subestimar quem gosta de nós. Se a garota na mesa ao lado sorri em nossa direção, começamos a reparar nos seus defeitos. Se a pessoa fosse realmente bacana não me daria bola assim de graça. Se ela não resiste aos meus escassos encantos é uma mulher fácil – e mulheres fáceis não valem nada, certo? O nome disso, damas e cavalheiros, é baixa auto-estima: não entro em clube que me queira como sócio. É engraçado, mas dói.

Também somos educados para o sacrifício. Aquilo que ganhamos sem suor não tem valor. Somos uma sociedade de lutadores, não somos? Temos de nos esforçar para obter recompensas. As coisas que realmente valem a pena são obtidas à duras penas. E por aí vai. De tanto ouvir essa conversa - na escola, no esporte, no escritório - levamos seus pressupostos para a vida afetiva. Acabamos acreditando que também no terreno do afeto deveríamos ser capazes de lutar, sofrer e triunfar. Precisamos de conquistas épicas para contar no jantar de domingo. Se for fácil demais, não vale. Amor assim não tem graça, diz um amigo meu. Será mesmo?

Minha experiência sugere o contrário.

Desde a adolescência, e no transcorrer da vida adulta, todas as mulheres importantes me caíram do céu. A moça que vomitou no meu pé na festa do centro acadêmico e me levou para dormir na sala da casa dela. Casamos. A garota de olhos tristes que eu conheci na porta do cinema e meia hora depois tomava o meu sorvete. Quase casamos? A mulher cujo nome eu perguntei na lanchonete do trabalho e 24 horas depois me chamou para uma festa. A menina do interior que resolveu dançar comigo num impulso. Nenhuma delas foi seduzida, conquistada ou convencida a gostar de mim. Elas tomaram a iniciativa – ou retribuíram sem hesitar a atenção que eu dei a elas.

Toda vez que eu insisti com quem não estava interessada deu errado. Toda vez que tentei escalar o muro da indiferença foi inútil. Ou descobri que do outro lado não havia nada. Na minha experiência, amor é um território em que coragem e a iniciativa são premiadas, mas empenho, persistência e determinação nunca trouxeram resultado.

Relato essa experiência para discutir uma questão que me parece da maior gravidade: o quanto deveríamos insistir em obter a atenção de uma pessoa que não parece retribuir os nossos sentimos?

Quem está emocionalmente disponível lida com esse tipo de dilema o tempo todo. Você conhece a figura, acha bacana, liga uns dias depois e ela não atende e nem liga de volta. O que fazer? Você sai com a pessoa, acha ela o máximo, tenta um segundo encontro e ela reluta em marcar a data. Como proceder a partir daí? Você começou uma relação, está se apaixonando, mas a outra parte, um belo dia, deixa de retornar seus telefonemas. O que se faz? Você está apaixonado ou apaixonada, levou um pé na bunda e mal consegue respirar. É o caso de tentar reconquistar ou seria melhor proteger-se e ajudar o sentimento a morrer?

Todas essas situações conduzem à mesma escolha: insistir ou desistir?

Quem acha que o amor é um campo de batalha geralmente opta pela insistência. Quem acha que ele é uma ocorrência espontânea tende a escolher a desistência (embora isso pareça feio). Na prática, como não temos 100% de certeza sobre as coisas, e como não nos controlamos 100%, oscilamos entre uma e outra posição, ao sabor das circunstâncias e do tamanho do envolvimento. Mas a maioria de nós, mesmo de forma inconsciente, traça um limite para o quanto se empenhar (ou rastejar) num caso desses. Quem não tem limites sofre além da conta – e frequentemente faz papel de bobo, com resultados pífios.

Uma das minhas teorias favoritas é que mesmo que a pessoa ceda a um assédio longo e custoso a relação estará envenenada. Pela simples razão de que ninguém é esnobado por muito tempo ou de forma muito ostensiva sem desenvolver ressentimentos. E ressentimentos não se dissipam. Eles ficam e cobram um preço. Cedo ou tarde a conta chega. E o tipo de personalidade que insiste demais numa conquista pode estar movida por motivos errados: o interesse é pela pessoa ou pela dificuldade? É um caso de amor ou de amor próprio?

Ser amado de graça, por outro lado, não tem preço. É a homenagem mais bacana que uma pessoa pode nos fazer. Você está ali, na vida (no trabalho, na balada, nas férias, no churrasco, na casa do amigo) e a pessoa simplesmente gosta de você. Ou você se aproxima com uma conversa fiada e ela recebe esse gesto de braços abertos. O que pode ser melhor do que isso? O que pode ser melhor do que ser gostado por aquilo que se é – sem truques, sem jogos de sedução, sem premeditações? Neste momento eu não consigo me lembrar de nada.


Texto originalmente publicado no site da revista Época.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Terminei de ler e indico


Criação imperfeita: cosmo, vida e o código oculto da natureza, de Marcelo Gleiser

“Dadas as descobertas das últimas décadas, basta abrir os olhos para ver que estamos avançando numa nova direção, criando uma nova visão de mundo, em que a ênfase deixa de ser no cosmo e passa a ser em nós, humanos: o mistério não é que um Universo especial gerou criaturas mundanas, e sim que um Universo mundano gerou criaturas especiais.” (pág. 147)

“A ordem que buscamos na Natureza não passa de um reflexo da ordem que tanto buscamos nas nossas vidas. O mundo só é belo porque somos nós que o olhamos.” (pág. 148)

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Exposição Sinestesia, de Leonardo Miranda

Uma das coisas mais interessantes no universo da arte/cultura é quando se vai a um evento, seja ele qual for, e mesmo sem ter o menor conhecimento a respeito do artista em questão, a obra (e não o artista), consegue te tocar de maneira singular. Foi exatamente o que aconteceu quando vi exposição “Sinestesia”, de Leonardo Miranda, no CCJF – Centro Cultural da Justiça Federal, no centro do Rio de Janeiro.

Durante o horário de almoço, ao entrar despretensiosamente no espaço para ver o que estava acontecendo, me deparei com a exposição de Leonardo Miranda – que nunca ouvi falar antes -, que gira em torno de fotografias e instalações. As galerias do 2º andar do CCJF estão completamente tomadas pelas obras, instalações e intervenções do artista. Todas as paredes estão cobertas com frases que dialogam com as obras e que, por vezes, parecem direcionadas ao espectador, suscitando, em alguns momentos, uma relação de conflito e em outros de aproximação, não só com as obras mas com o próprio eu.

O trabalho tem densidade não só pela visível qualidade estética mas também pelo conteúdo e reflexão que podem gerar no espectador. Vendo trabalhos como o de Leonardo Miranda podemos perceber claramente a necessidade da arte, tal como falou Ernst Fischer em seu livro homônimo. Por fim, cabe destacar que as modelos das fotografias são lindas e merecem atenção especial.



Sinestesia, de Leonardo Miranda
Galerias do 2º andar
CCJF – Centro Cultural da Justiça Federal
De terça a domingo, das 12h ás 19h, até 12/02/2012.
Entrada franca.

sábado, 21 de janeiro de 2012

Noturno

Lá fora o frio rasga a noite como um avião a nuvem.
O vento entra pela janela e traz o perfume da dama-da-noite.

Ausente, eu te vejo pura como a a carne da pêra
e o sumo do seu corpo desperta a alvorada.

Já é manhã e os primeiros raios solares
abruptamente me tomam o regaço da soledade noturna.

O teu toque matutino me invade como uma faca
e me derruba qual a força da palavra.

(Valterlei Borges, do livro independente "Castelo de areia", de 2006)

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Un cuchillo en el norte


vitor ramil, acompanhado pelo argentino carlos moscardini , sobre  poesia de jorge luis borges. do disco "délibáb" (2010).


Allá por el maldonado,
Que hoy corre escondido y ciego,
Allá por el barrio gris
Que cantó el pobre carriego,
Tras una puerta entornada
Que da al patio de la parra,
Donde las noches oyeron
El amor de la guitarra,
Habrá un cajón y en el fondo
Dormirá con duro brillo,
Entre esas cosas que el tiempo
Sabe olvidar, un cuchillo.
Fue de aquel saverio suárez,
Por más mentas el chileno,
Que en garitos y elecciones
Probó siempre que era bueno.
Los chicos, que son el diablo,
Lo buscarán con sigilo
Y probarán en la yema
Si no se ha mellado el filo.
Cuántas veces habrá entrado
En la carne de un cristiano
Y ahora está arrumbado y solo,
A la espera de una mano,
Que es polvo. tras el cristal
Que dora un sol amarillo,
A través de años y casas,
Yo te estoy viendo, cuchillo.

(jorge luis borges, do livro “para la seis cuerdas”, de 1965)

sábado, 14 de janeiro de 2012

A canção desesperada, de Pablo Neruda

Tua lembrança emerge da noite em que estou.
O rio junta ao mar seu lamento obstinado.

Abandonado como os portos na alvorada.
É a hora de partir, oh abandonado!

Sobre o meu coração chovem frias corolas.
Oh sentina de escombros, feroz cova de náufragos!

Em ti se acumularam as guerras e os vôos.
De ti alçaram asas os pássaros do canto.

Ah, tudo devoraste como a fria distância.
Como mar, como o tempo. Tudo em ti foi naufrágio!

Era o momento alegre do assalto e do beijo.
Era a hora do assombro que ardia como um facho.

Angústia de piloto, fúria de búzio cego,
turva embriaguez de amor, tudo em ti foi naufrágio!

Minha infância de névoa, de alma alada e ferida.
Descobridor perdido, tudo em ti foi naufrágio!

Eu fiz retroceder a muralha de sombra,
e caminhei além do desejo e do ato.

Oh carne, carne minha, mulher que amo e perdi,
a ti, nesta hora úmida, evoco e elevo o canto.

Como um vaso abrigaste a infinita ternura,
e o esquecimento infindo te partiu como a um vaso.

Era a negra, era a negra soledade das ilhas,
e ali me receberam, mulher de amor, teus braços.

Era a sede, era a fome, e foste tu o fruto.
Era o luto, as ruínas, e tu foste o milagre.

Ah mulher, não sei como tu pudeste conter-me
na terra de tua alma e na cruz de teus braços!

Meu desejo de ti foi o mais tenso e curto,
o mais revolto e ébrio, o mais terrível e ávido.

Cemitério de beijos, inda há fogo em tuas tumbas,
ardem ainda as uvas bicadas pelos pássaros.

Oh a boca mordida, oh os beijados membros,
oh os famintos dentes, oh os corpos trançados.

Oh, a cópula louca de esperança e esforço,
em que nos enlaçamos e nos desesperamos.

E a ternura leve como a água e o trigo.
E a palavra apenas começada nos lábios.

Foi esse o meu destino: nele foi meu anseio
e caiu meu anseio, tudo em ti foi naufrágio!

De queda em queda ainda flamejaste e cantaste.
De pé qual um marujo sobre a proa de um barco.

Ainda floriste em cantos, rompeste correntezas.
Oh sentina de escombros, poço aberto e amargo.

Pálido búzio cego, fundeiro desditoso,
descobridor perdido, tudo em ti foi naufrágio!

É a hora de partir, a dura e fria hora
pela noite sujeita a todos os horários.

O cinturão ruidoso do mar aperta a costa.
Surgem frias estrelas, emigram negros pássaros.

Abandonado como os portos na alvorada.
Somente a sombra trêmula se contorce em meus braços.

Ah, mais do que isso tudo. Ah, mais do que isso tudo.
É hora de partir. Oh abandonado!

(20 Poemas de Amor e Uma Canção Desesperada, tradução de Domingos Carvalho da Silva)