segunda-feira, 2 de julho de 2012

Manuel Bandeira






Poética


Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto espediente protocolo e manifestações de apreço ao sr. diretor.

Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo.

Abaixo os puristas.
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis

Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo.

De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc.

Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbados
O lirismo difícil e pungente dos bêbados
O lirismo dos clowns de Shakespeare.

- Não quero saber do lirismo que não é libertação.

(Manuel Bandeira)

segunda-feira, 25 de junho de 2012

De tudo, talvez, permaneça
o que significa. O que
não interessa. De tudo,
quem sabe, fique aquilo
que passa. Um gerânio
de aflição. Um gosto
de obturação na boca.
Você de cabelo molhado
saindo do banho.
Uma piada. Um provérbio.
Um buquê de presságios.
Sons de gotas na torneira da pia.
Tranqueiras líricas
na velha caixa de sapato.
De tudo, talvez, restem
bêbadas anotações
no guardanapo.
E aquela música linda
que nunca toca no rádio.


(Marcelo Montenegro)

 *Agradecimento especial a Fernanda Lima pelo envio do "maravilhoso" poema.

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Augusto dos Anjos


 Augusto dos Anjos




Versos íntimos

Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão - esta pantera -
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!

terça-feira, 27 de março de 2012

Pablo Neruda

 Pablo Neruda e Matilde Urrutia



Cada dia Matilde
              
Hoje a ti: és esbelta
como o corpo do Chile, e delicada
como uma flor de anis,
e em cada ramo guardas testemunho
de nossas indeléveis primaveras:
Que dia é hoje? O teu.
E é o ontem amanhã, não sucedeu,
nenhum dia se foi de tuas mãos:
guardas o sol, a terra, as violetas
em tua breve sombra quando dormes.
E assim cada manhã
presenteias-me a vida.


 

terça-feira, 20 de março de 2012

Carlos Drummond de Andrade

  Drummond


Poema da necessidade

É preciso casar João,
é preciso suportar Antônio,
é preciso odiar Melquíades
é preciso substituir nós todos.

É preciso salvar o país,
é preciso crer em Deus,
é preciso pagar as dívidas,
é preciso comprar um rádio,
é preciso esquecer fulana.

É preciso estudar volapuque,
é preciso estar sempre bêbado,
é preciso ler Baudelaire,
é preciso colher as flores
de que rezam velhos autores.

É preciso viver com os homens
é preciso não assassiná-los,
é preciso ter mãos pálidas
e anunciar o fim do mundo.


  Agradecimento especial ao amigo Ricardo Ramos pelo envio do poema.

quarta-feira, 7 de março de 2012

Florbela Espanca

Fanatismo

Minh'alma, de sonhar-te, anda perdida
Meus olhos andam cegos de te ver!
Não és sequer razão de meu viver,
Pois que tu és já toda a minha vida!

Não vejo nada assim enlouquecida...
Passo no mundo, meu Amor, a ler
No misterioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida!

Tudo no mundo é frágil, tudo passa..."
Quando me dizem isto, toda a graça
Duma boca divina fala em mim!

E, olhos postos em ti, vivo de rastros:
"Ah!  Podem voar mundos, morrer astros,
Que tu és como Deus: princípio e fim!..."

Florbela Espanca

domingo, 4 de março de 2012

Ferreira Gullar

Gullar



Estranheza do Mundo

Olho a árvore e indago:
está aí para quê?
O mundo é sem sentido
quanto mais vasto é.
Esta pedra esta folha
este mar sem tamanho
fecham-se em si, me
repelem.
Pervago em um mundo estranho.
Mas em meio à estranheza
do mundo, descubro
uma nova beleza
com que me deslumbro:
é teu doce sorriso
é tua pele macia
são teus olhos brilhando
é essa tua alegria.
Olho a árvore e já
não pergunto "para quê"?
A estranheza do mundo
se dissipa em você.


Ferreira Gullar

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Agualusa

José Eduardo Agualusa



Barroco tropical

O amor é inútil: luz das estrelas
a ninguém aquece ou ilumina
e se nos chama, a chama delas
logo no céu lasso declina.

O amor é sem préstimo: clarão
na tempestade, depressa se apaga
e é maior depois a escuridão,
noite sem fim, vaga após vaga.

O amor a ninguém serve, e todavia
a ele regressamos, dia após dia
cegos por seu fulgor, tontos de sede
nos damos sem pudor em sua rede.

O amor é uma estação perigosa:
rosa ocultando o espinho,
espinho disfarçado de rosa,
a enganosa euforia do vinho.


José Eduardo Agualusa / Ricardo Cruz

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Gullar

Ferreira Gullar




Pergunta e resposta

Se é fato que
toda a massa do sistema
solar (somando a de Saturno e Marte
e Terra e Vênus e Urano e Mercúrio
e Plutão, mais
os satélites, mais
os asteróides, mais) equivale
apenas a 2% da massa
total do Sol e
que o Sol não é mais
que um mínimo ponto
de luz na estonteante tessitura de
gás e poeira da Via
Láctea e que a Via
Láctea é apenas uma
Entre bilhões de galáxias
que à velocidade de 300 mil km por segundo
voam e explodem
na noite

           
 então pergunto:
           
 o que faz aí
           
 meu poema com seu

           
 inaudível ruído?
             E respondo:
           
 Inaudível
           
 Para quem esteja
           
          Na galáxia NGC 5128
           
 Ou na constelação
           
 de Virgo ou mesmo
           
        em Ganimedes
           
 onde felizmente não estás,
           
         Cláudia Ahimsa,
             poeta e musa do planeta Terra.


Ferreira Gullar

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Cecília Meireles

Cecília Meireles



Naufrágio

Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
- depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar

Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre de meus dedos
colore as areias desertas.

O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio...

Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.

Depois, tudo estará perfeito;
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.


Cecília Meireles

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Valterlei Borges


Mãos dadas

Não quero ser o poeta
        que reclama dores de amor
Não quero ser o poeta
        que bebe por falta de paixões
Não quero ser o poeta
        que se vinga através dos versos
Não quero ser o poeta
        que se vangloria de poemas inúteis
Quero ser o poeta
        que nas ruas anda de mãos dadas


março de 2006, Valterlei Borges

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Ferreira Gullar

Estou lendo o último livro do Gullar, Em alguma parte alguma (2010), e estou maravilhado: não tem uma vírgula fora do lugar. Depois de 80 anos de poesia não poderia ser diferente...


Ferreira Gullar

Inseto

Um inseto é mais complexo que um poema
Não tem autor
Move-o uma obscura energia
Um inseto é mais complexo que uma hidrelétrica

Também mais complexo
                        que uma hidrelétrica
é um poema
(menos complexo que um inseto)

e pode às vezes
                       (o poema)
com sua energia
iluminar a avenida
             ou quem sabe
                                   uma vida.


Ferreira Gullar

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Poema só para Jayme Ovalle

Casamento de Jayme Ovalle: da esquerda para a direita, Murilo Mendes, Anibal Machado, Jayme Ovalle, Manuel Bandeira e Augusto Frederico Schmidt



Quando hoje acordei, ainda fazia escuro
(Embora a manhã já estivesse avançada).
Chovia.
Chovia uma triste chuva de resignação
Como contraste e consolo ao calor tempestuoso da noite.
Então me levantei,
Bebi o café que eu mesmo preparei,
Depois me deitei novamente, acendi um cigarro e fiquei pensando...
- Humildemente pensando na vida e nas mulheres que amei.

Manuel Bandeira

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

A ilusão da casa


 Vitor Ramil



As imagens descem como folhas
No chão da sala
Folhas que o luar acende
Folhas que o vento espalha

As imagens se acumulam
Rolam no pó da sala
São pequenas folhas secas
Folhas de pura prata
 
As imagens enchem tudo
Vivem do ar da sala
São montanhas secas
São montanhas enluaradas

Eu plantado no alto em mim
Contemplo a ilusão da casa
As imagens enchem tudo
Vivem enquanto falo

Eu sei
O tempo é o meu lugar
O tempo é minha casa
A casa é onde quero estar
Eu sei


Vitor Ramil

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Mario de Andrade

Mario de Andrade, por Tarsila do Amaral - pintura de 1922



O valioso tempo dos maduros

Contei meus anos e descobri que terei menos tempo para viver daqui para a frente do que já vivi até agora.

Tenho muito mais passado do que futuro.

Sinto-me como aquele menino que recebeu uma bacia de cerejas.

As primeiras, ele chupou displicente, mas percebendo que faltam poucas, rói o caroço.

Já não tenho tempo para lidar com mediocridades.

Não quero estar em reuniões onde desfilam egos inflamados.
Inquieto-me com invejosos tentando destruir quem eles admiram, cobiçando seus lugares, talentos e sorte.

Já não tenho tempo para conversas intermináveis, para discutir assuntos inúteis sobre vidas alheias que nem fazem parte da minha.

Já não tenho tempo para administrar melindres de pessoas, que apesar da idade cronológica, são imaturos.

Detesto fazer acareação de desafectos que brigaram pelo majestoso cargo de secretário-geral do coral.

'As pessoas não debatem conteúdos, apenas os rótulos'.
Meu tempo tornou-se escasso para debater rótulos, quero a essência, minha alma tem pressa...

Sem muitas cerejas na bacia, quero viver ao lado de gente humana, muito humana; que sabe rir de seus tropeços, não se encanta comtriunfos, não se considera eleita antes da hora, não foge de sua mortalidade,

Caminhar perto de coisas e pessoas de verdade,

O essencial faz a vida valer a pena.

E para mim, basta o essencial!


Mario de Andrade 


Agradecimento especial a Carol Guimarães por ter enviado o poema.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Indivisíveis

  Mario Quintana
 

O meu primeiro amor
e eu sentávamos numa pedra
que havia num terreno baldio entre as nossas casas.
Falávamos de coisas bobas, isto é,
que a gente grande achava bobas.
Como qualquer troca de confidências
entre crianças de cinco anos. Crianças...
Parecia que entre um e outro
nem havia ainda separação de sexos,
a não ser o azul imenso dos olhos dela,
olhos que eu não encontrava em ninguém mais,
nem no cachorro e no gato da casa,
que apenas tinham a mesma fidelidade sem compromisso
e a mesma animal - ou celestial - inocência.
Porque o azul dos olhos dela tornava mais azul o céu.
Não importava as coisas bobas que disséssemos.
Éramos um desejo de estar perto, tão perto,
que não havia ali apenas duas encantadoras criaturas,
mas um único amor sentado sobre uma tosca pedra,
enquanto a gente grande passava, caçoava, ria-se,
não sabia que eles levariam procurando
uma coisa assim por toda a sua vida...

Mario Quintana


Agradecimento especial a Lilian Alfaia pelo envio do poema.

domingo, 29 de janeiro de 2012

O amor bom é facinho

Recebi o link desse texto através do amigo e grande poeta paratiense Flávio de Araújo. Adorei o texto, de autoria de Ivan Martins, pois levanta algumas reflexões e questões pertinentes às relações contemporâneas. Por concordar com o autor, compartilho o texto aqui...




Ivan Martins


Há conversas que nunca terminam e dúvidas que jamais desaparecem. Sobre a melhor maneira de iniciar uma relação, por exemplo. Muita gente acredita que aquilo que se ganha com facilidade se perde do mesmo jeito. Acham que as relações que exigem esforço têm mais valor. Mulheres difíceis de conquistar, homens difíceis de manter, namoros que dão trabalho - esses tendem a ser mais importantes e duradouros. Mas será verdade?

Eu suspeito que não.

Acho que somos ensinados a subestimar quem gosta de nós. Se a garota na mesa ao lado sorri em nossa direção, começamos a reparar nos seus defeitos. Se a pessoa fosse realmente bacana não me daria bola assim de graça. Se ela não resiste aos meus escassos encantos é uma mulher fácil – e mulheres fáceis não valem nada, certo? O nome disso, damas e cavalheiros, é baixa auto-estima: não entro em clube que me queira como sócio. É engraçado, mas dói.

Também somos educados para o sacrifício. Aquilo que ganhamos sem suor não tem valor. Somos uma sociedade de lutadores, não somos? Temos de nos esforçar para obter recompensas. As coisas que realmente valem a pena são obtidas à duras penas. E por aí vai. De tanto ouvir essa conversa - na escola, no esporte, no escritório - levamos seus pressupostos para a vida afetiva. Acabamos acreditando que também no terreno do afeto deveríamos ser capazes de lutar, sofrer e triunfar. Precisamos de conquistas épicas para contar no jantar de domingo. Se for fácil demais, não vale. Amor assim não tem graça, diz um amigo meu. Será mesmo?

Minha experiência sugere o contrário.

Desde a adolescência, e no transcorrer da vida adulta, todas as mulheres importantes me caíram do céu. A moça que vomitou no meu pé na festa do centro acadêmico e me levou para dormir na sala da casa dela. Casamos. A garota de olhos tristes que eu conheci na porta do cinema e meia hora depois tomava o meu sorvete. Quase casamos? A mulher cujo nome eu perguntei na lanchonete do trabalho e 24 horas depois me chamou para uma festa. A menina do interior que resolveu dançar comigo num impulso. Nenhuma delas foi seduzida, conquistada ou convencida a gostar de mim. Elas tomaram a iniciativa – ou retribuíram sem hesitar a atenção que eu dei a elas.

Toda vez que eu insisti com quem não estava interessada deu errado. Toda vez que tentei escalar o muro da indiferença foi inútil. Ou descobri que do outro lado não havia nada. Na minha experiência, amor é um território em que coragem e a iniciativa são premiadas, mas empenho, persistência e determinação nunca trouxeram resultado.

Relato essa experiência para discutir uma questão que me parece da maior gravidade: o quanto deveríamos insistir em obter a atenção de uma pessoa que não parece retribuir os nossos sentimos?

Quem está emocionalmente disponível lida com esse tipo de dilema o tempo todo. Você conhece a figura, acha bacana, liga uns dias depois e ela não atende e nem liga de volta. O que fazer? Você sai com a pessoa, acha ela o máximo, tenta um segundo encontro e ela reluta em marcar a data. Como proceder a partir daí? Você começou uma relação, está se apaixonando, mas a outra parte, um belo dia, deixa de retornar seus telefonemas. O que se faz? Você está apaixonado ou apaixonada, levou um pé na bunda e mal consegue respirar. É o caso de tentar reconquistar ou seria melhor proteger-se e ajudar o sentimento a morrer?

Todas essas situações conduzem à mesma escolha: insistir ou desistir?

Quem acha que o amor é um campo de batalha geralmente opta pela insistência. Quem acha que ele é uma ocorrência espontânea tende a escolher a desistência (embora isso pareça feio). Na prática, como não temos 100% de certeza sobre as coisas, e como não nos controlamos 100%, oscilamos entre uma e outra posição, ao sabor das circunstâncias e do tamanho do envolvimento. Mas a maioria de nós, mesmo de forma inconsciente, traça um limite para o quanto se empenhar (ou rastejar) num caso desses. Quem não tem limites sofre além da conta – e frequentemente faz papel de bobo, com resultados pífios.

Uma das minhas teorias favoritas é que mesmo que a pessoa ceda a um assédio longo e custoso a relação estará envenenada. Pela simples razão de que ninguém é esnobado por muito tempo ou de forma muito ostensiva sem desenvolver ressentimentos. E ressentimentos não se dissipam. Eles ficam e cobram um preço. Cedo ou tarde a conta chega. E o tipo de personalidade que insiste demais numa conquista pode estar movida por motivos errados: o interesse é pela pessoa ou pela dificuldade? É um caso de amor ou de amor próprio?

Ser amado de graça, por outro lado, não tem preço. É a homenagem mais bacana que uma pessoa pode nos fazer. Você está ali, na vida (no trabalho, na balada, nas férias, no churrasco, na casa do amigo) e a pessoa simplesmente gosta de você. Ou você se aproxima com uma conversa fiada e ela recebe esse gesto de braços abertos. O que pode ser melhor do que isso? O que pode ser melhor do que ser gostado por aquilo que se é – sem truques, sem jogos de sedução, sem premeditações? Neste momento eu não consigo me lembrar de nada.


Texto originalmente publicado no site da revista Época.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Terminei de ler e indico


Criação imperfeita: cosmo, vida e o código oculto da natureza, de Marcelo Gleiser

“Dadas as descobertas das últimas décadas, basta abrir os olhos para ver que estamos avançando numa nova direção, criando uma nova visão de mundo, em que a ênfase deixa de ser no cosmo e passa a ser em nós, humanos: o mistério não é que um Universo especial gerou criaturas mundanas, e sim que um Universo mundano gerou criaturas especiais.” (pág. 147)

“A ordem que buscamos na Natureza não passa de um reflexo da ordem que tanto buscamos nas nossas vidas. O mundo só é belo porque somos nós que o olhamos.” (pág. 148)

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Exposição Sinestesia, de Leonardo Miranda

Uma das coisas mais interessantes no universo da arte/cultura é quando se vai a um evento, seja ele qual for, e mesmo sem ter o menor conhecimento a respeito do artista em questão, a obra (e não o artista), consegue te tocar de maneira singular. Foi exatamente o que aconteceu quando vi exposição “Sinestesia”, de Leonardo Miranda, no CCJF – Centro Cultural da Justiça Federal, no centro do Rio de Janeiro.

Durante o horário de almoço, ao entrar despretensiosamente no espaço para ver o que estava acontecendo, me deparei com a exposição de Leonardo Miranda – que nunca ouvi falar antes -, que gira em torno de fotografias e instalações. As galerias do 2º andar do CCJF estão completamente tomadas pelas obras, instalações e intervenções do artista. Todas as paredes estão cobertas com frases que dialogam com as obras e que, por vezes, parecem direcionadas ao espectador, suscitando, em alguns momentos, uma relação de conflito e em outros de aproximação, não só com as obras mas com o próprio eu.

O trabalho tem densidade não só pela visível qualidade estética mas também pelo conteúdo e reflexão que podem gerar no espectador. Vendo trabalhos como o de Leonardo Miranda podemos perceber claramente a necessidade da arte, tal como falou Ernst Fischer em seu livro homônimo. Por fim, cabe destacar que as modelos das fotografias são lindas e merecem atenção especial.



Sinestesia, de Leonardo Miranda
Galerias do 2º andar
CCJF – Centro Cultural da Justiça Federal
De terça a domingo, das 12h ás 19h, até 12/02/2012.
Entrada franca.

sábado, 21 de janeiro de 2012

Noturno

Lá fora o frio rasga a noite como um avião a nuvem.
O vento entra pela janela e traz o perfume da dama-da-noite.

Ausente, eu te vejo pura como a a carne da pêra
e o sumo do seu corpo desperta a alvorada.

Já é manhã e os primeiros raios solares
abruptamente me tomam o regaço da soledade noturna.

O teu toque matutino me invade como uma faca
e me derruba qual a força da palavra.

(Valterlei Borges, do livro independente "Castelo de areia", de 2006)

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Un cuchillo en el norte


vitor ramil, acompanhado pelo argentino carlos moscardini , sobre  poesia de jorge luis borges. do disco "délibáb" (2010).


Allá por el maldonado,
Que hoy corre escondido y ciego,
Allá por el barrio gris
Que cantó el pobre carriego,
Tras una puerta entornada
Que da al patio de la parra,
Donde las noches oyeron
El amor de la guitarra,
Habrá un cajón y en el fondo
Dormirá con duro brillo,
Entre esas cosas que el tiempo
Sabe olvidar, un cuchillo.
Fue de aquel saverio suárez,
Por más mentas el chileno,
Que en garitos y elecciones
Probó siempre que era bueno.
Los chicos, que son el diablo,
Lo buscarán con sigilo
Y probarán en la yema
Si no se ha mellado el filo.
Cuántas veces habrá entrado
En la carne de un cristiano
Y ahora está arrumbado y solo,
A la espera de una mano,
Que es polvo. tras el cristal
Que dora un sol amarillo,
A través de años y casas,
Yo te estoy viendo, cuchillo.

(jorge luis borges, do livro “para la seis cuerdas”, de 1965)

sábado, 14 de janeiro de 2012

A canção desesperada, de Pablo Neruda

Tua lembrança emerge da noite em que estou.
O rio junta ao mar seu lamento obstinado.

Abandonado como os portos na alvorada.
É a hora de partir, oh abandonado!

Sobre o meu coração chovem frias corolas.
Oh sentina de escombros, feroz cova de náufragos!

Em ti se acumularam as guerras e os vôos.
De ti alçaram asas os pássaros do canto.

Ah, tudo devoraste como a fria distância.
Como mar, como o tempo. Tudo em ti foi naufrágio!

Era o momento alegre do assalto e do beijo.
Era a hora do assombro que ardia como um facho.

Angústia de piloto, fúria de búzio cego,
turva embriaguez de amor, tudo em ti foi naufrágio!

Minha infância de névoa, de alma alada e ferida.
Descobridor perdido, tudo em ti foi naufrágio!

Eu fiz retroceder a muralha de sombra,
e caminhei além do desejo e do ato.

Oh carne, carne minha, mulher que amo e perdi,
a ti, nesta hora úmida, evoco e elevo o canto.

Como um vaso abrigaste a infinita ternura,
e o esquecimento infindo te partiu como a um vaso.

Era a negra, era a negra soledade das ilhas,
e ali me receberam, mulher de amor, teus braços.

Era a sede, era a fome, e foste tu o fruto.
Era o luto, as ruínas, e tu foste o milagre.

Ah mulher, não sei como tu pudeste conter-me
na terra de tua alma e na cruz de teus braços!

Meu desejo de ti foi o mais tenso e curto,
o mais revolto e ébrio, o mais terrível e ávido.

Cemitério de beijos, inda há fogo em tuas tumbas,
ardem ainda as uvas bicadas pelos pássaros.

Oh a boca mordida, oh os beijados membros,
oh os famintos dentes, oh os corpos trançados.

Oh, a cópula louca de esperança e esforço,
em que nos enlaçamos e nos desesperamos.

E a ternura leve como a água e o trigo.
E a palavra apenas começada nos lábios.

Foi esse o meu destino: nele foi meu anseio
e caiu meu anseio, tudo em ti foi naufrágio!

De queda em queda ainda flamejaste e cantaste.
De pé qual um marujo sobre a proa de um barco.

Ainda floriste em cantos, rompeste correntezas.
Oh sentina de escombros, poço aberto e amargo.

Pálido búzio cego, fundeiro desditoso,
descobridor perdido, tudo em ti foi naufrágio!

É a hora de partir, a dura e fria hora
pela noite sujeita a todos os horários.

O cinturão ruidoso do mar aperta a costa.
Surgem frias estrelas, emigram negros pássaros.

Abandonado como os portos na alvorada.
Somente a sombra trêmula se contorce em meus braços.

Ah, mais do que isso tudo. Ah, mais do que isso tudo.
É hora de partir. Oh abandonado!

(20 Poemas de Amor e Uma Canção Desesperada, tradução de Domingos Carvalho da Silva)