domingo, 9 de junho de 2013

ATO DE CONTRIÇÃO

Perdoe-me
por chegar assim, tão de repente
e encontrar-te assim, tão desprevenida

Perdoe-me
por não te dar tempo de me conheceres inteiro,
mas apenas o tempo inteiro tentar ser tudo aquilo
que - sei - tu gostarias que eu fosse

Perdoe-me
por tão subitamente adentar teu corpo,
tenda, tempo do espírito,
sem antes deter-me em cada detalhe
Bater à porta com suavidade
Encantar-me com os vasos na janela
Sentir todos os cheiros
e, devagar, ir penetrando comum sorriso

Perdoe-me
por, já dentro de ti, ter esquecido do essencial
Não ter percebido quadro pendurado na parede
Não ter regulado o oxigênio dos peixes dourados no aquário
Não ter falado do retrato amarelado na mesa de cabeceira
Não ter me emocionado com o velho gramofone no canto da sala
e não ouvir as belas e tristes canções por ti sussurradas

Perdoe-me
por, ainda dentro de tua casa - tão próximo de tua alma -
não ter percorrido com brandura todos os cômodos,
mas apenas comodamente ter seguindo meu próprio caminho

Perdoe-me
por, assim sozinho, tão impróprio ter sido,
quando melhor teria sido deixar que naturalmente fôssemos

Perdoe-me
por assim partir, deixando apenas inconsistência
em múltiplas formas de sonho e esperanças
Perdoe-me, perdoe-me.


Raimundo Gadelha
Do livro Para não esqueceres dos seres que somos (1998)

Nenhum comentário:

Postar um comentário