ATO DE CONTRIÇÃO
Perdoe-me
por chegar assim, tão de repente
e encontrar-te assim, tão desprevenida
Perdoe-me
por não te dar tempo de me conheceres inteiro,
mas apenas o tempo inteiro tentar ser tudo aquilo
que - sei - tu gostarias que eu fosse
Perdoe-me
por tão subitamente adentar teu corpo,
tenda, tempo do espírito,
sem antes deter-me em cada detalhe
Bater à porta com suavidade
Encantar-me com os vasos na janela
Sentir todos os cheiros
e, devagar, ir penetrando comum sorriso
Perdoe-me
por, já dentro de ti, ter esquecido do essencial
Não ter percebido quadro pendurado na parede
Não ter regulado o oxigênio dos peixes dourados no aquário
Não ter falado do retrato amarelado na mesa de cabeceira
Não ter me emocionado com o velho gramofone no canto da sala
e não ouvir as belas e tristes canções por ti sussurradas
Perdoe-me
por, ainda dentro de tua casa - tão próximo de tua alma -
não ter percorrido com brandura todos os cômodos,
mas apenas comodamente ter seguindo meu próprio caminho
Perdoe-me
por, assim sozinho, tão impróprio ter sido,
quando melhor teria sido deixar que naturalmente fôssemos
Perdoe-me
por assim partir, deixando apenas inconsistência
em múltiplas formas de sonho e esperanças
Perdoe-me, perdoe-me.
Raimundo Gadelha
Do livro Para não esqueceres dos seres que somos (1998)
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