sábado, 14 de janeiro de 2012

A canção desesperada, de Pablo Neruda

Tua lembrança emerge da noite em que estou.
O rio junta ao mar seu lamento obstinado.

Abandonado como os portos na alvorada.
É a hora de partir, oh abandonado!

Sobre o meu coração chovem frias corolas.
Oh sentina de escombros, feroz cova de náufragos!

Em ti se acumularam as guerras e os vôos.
De ti alçaram asas os pássaros do canto.

Ah, tudo devoraste como a fria distância.
Como mar, como o tempo. Tudo em ti foi naufrágio!

Era o momento alegre do assalto e do beijo.
Era a hora do assombro que ardia como um facho.

Angústia de piloto, fúria de búzio cego,
turva embriaguez de amor, tudo em ti foi naufrágio!

Minha infância de névoa, de alma alada e ferida.
Descobridor perdido, tudo em ti foi naufrágio!

Eu fiz retroceder a muralha de sombra,
e caminhei além do desejo e do ato.

Oh carne, carne minha, mulher que amo e perdi,
a ti, nesta hora úmida, evoco e elevo o canto.

Como um vaso abrigaste a infinita ternura,
e o esquecimento infindo te partiu como a um vaso.

Era a negra, era a negra soledade das ilhas,
e ali me receberam, mulher de amor, teus braços.

Era a sede, era a fome, e foste tu o fruto.
Era o luto, as ruínas, e tu foste o milagre.

Ah mulher, não sei como tu pudeste conter-me
na terra de tua alma e na cruz de teus braços!

Meu desejo de ti foi o mais tenso e curto,
o mais revolto e ébrio, o mais terrível e ávido.

Cemitério de beijos, inda há fogo em tuas tumbas,
ardem ainda as uvas bicadas pelos pássaros.

Oh a boca mordida, oh os beijados membros,
oh os famintos dentes, oh os corpos trançados.

Oh, a cópula louca de esperança e esforço,
em que nos enlaçamos e nos desesperamos.

E a ternura leve como a água e o trigo.
E a palavra apenas começada nos lábios.

Foi esse o meu destino: nele foi meu anseio
e caiu meu anseio, tudo em ti foi naufrágio!

De queda em queda ainda flamejaste e cantaste.
De pé qual um marujo sobre a proa de um barco.

Ainda floriste em cantos, rompeste correntezas.
Oh sentina de escombros, poço aberto e amargo.

Pálido búzio cego, fundeiro desditoso,
descobridor perdido, tudo em ti foi naufrágio!

É a hora de partir, a dura e fria hora
pela noite sujeita a todos os horários.

O cinturão ruidoso do mar aperta a costa.
Surgem frias estrelas, emigram negros pássaros.

Abandonado como os portos na alvorada.
Somente a sombra trêmula se contorce em meus braços.

Ah, mais do que isso tudo. Ah, mais do que isso tudo.
É hora de partir. Oh abandonado!

(20 Poemas de Amor e Uma Canção Desesperada, tradução de Domingos Carvalho da Silva)

2 comentários:

  1. Grande Val, sempre uma boa pedida a troca de poemas e cortesias. Um brinde ao que há.

    abraço

    Leandro

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  2. uma canção desesperada para um antigo blog abandonado. salve val, salve neruda!

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